Quem não tem poder de con$umo não tem valor no capitali$mo
“Rolezinhos” expõem a discriminação $ocial e a herança ainda viva da escravidão
O capitalismo é um sistema econômico tão perverso que destrói qualquer possibilidade de convivência social pacífica. Isso porque o capitalismo é violento. A reprodução da sua cultura de valores corrói as relações sociais, cria diferenciações de classes brutais e barreiras invisíveis. Quem pode mais rechaça quem pode menos, muitas vezes, até inconscientemente.
Vez ou outra, alguns conflitos sociais expõem essas chagas e provocam um rebuliço na sociedade ao mostrar que não somos iguais, não existe igualdade de condições no acesso à educação, saúde, formação universitária, trabalho e choca aqueles trabalhadores assalariados que estão anestesiados pelo sistema.
O capitalismo nos estratifica em classes sociais. Essas classes são definidas pelo nível de renda e, consequentemente, de consumo. Daí, quem consome mais é visto como sucesso da meritocracia; quem consome menos, é visto como fracassado, preguiçoso, vagabundo. Para a meritocracia, idolatrada pela direita, tudo depende de esforço individual. Como se a filha da Xuxa, os herdeiros de Eike Batista, os filhos de políticos e autoridades alçadas a cargos públicos comissionados pelo simples e puro nepotismo tivessem concorrido e vencido nas mesmas condições de oportunidades os filhos do trabalhador e da trabalhadora assalariados. O conceito de meritocracia esconde o fato de que aqueles que nasceram em melhores condições de oportunidades sempre estarão à frente dos outros. Se tudo dependesse apenas do nosso próprio desempenho, todos seríamos “donos” de algum meio de produção de produtos ou serviços, não vendedores da nossa mão de obra assalariada.
Segregação de classes sociais
É essa cultura de segregação, de exclusão, de separação de classes que envolve a discussão sobre os “rolezinhos”. Quem não tem poder de compra não tem valor no capitalismo, que estratifica a sociedade conforme o nível de consumo. A diferenciação de classes sociais, a diferença entre o poder de consumo de uma fatia e outra da população, é estabelecida geograficamente. Quem tem mais dinheiro, consome mais, vive perto dos centros urbanos. Quem tem menos, é relegado às periferias. O tempo de deslocamento dos bairros populares aos centros das cidades e locais de consumo cultural, de produtos ou serviços é determinante para localizar as classes sociais geograficamente. Essa localização reforça a cultura capitalista de diferenciação e agregação de valor ou de demérito. Isso provoca a descriminação do trabalhador pobre quando ele vai procurar um emprego ou abrir um crediário e tem que dizer o bairro em que mora. Já existe um conceito de valor social embutido aí.
A discriminação social latente e invisível na sociedade é projetada muitas vezes pelo que se convencionou chamar de “classe média”. A classe média é uma abstração capitalista que seria um meio termo entre ricos e pobres. O desejo de consumir cada vez mais e ascender socialmente torna essa classe média mais próxima dos ricos do que dos pobres. Marx define esse conceito como “o desejo de ascensão pequeno burguês”. É por isso que agora há diferenciação até dentro desta abstração chamada classe média.
A rejeição à classe C
O capitalismo neoliberal do governo taxou de “classe C” uma parcela da população trabalhadora brasileira que passou para um novo nível de consumo e adentrou a classe média. Ocorre que essa mesma classe média não viu com bons olhos o fato de um setor de trabalhadores ascender a mais ou menos o seu nível de consumo sem que ela progredisse na hierarquia social. Ou seja, a classe C adentrou um território ocupado e exclusivo dos pequenos burgueses. Isso passou a incomodar, inclusive, geograficamente.
Os redutos da classe média
Daí, a classe média passou a se incomodar com a presença da classe C nos aeroportos, centros de compras climatizados, nas agências de viagens, hotéis, praias exclusivas da classe média no nordeste, aos serviços de telefonia e internet móvel, as cotas nas universidades, pacotes de TV a cabo. Aliás, uma matéria preconceituosa de um grande jornal chegou a dizer que os serviços antes exclusivos da classe média pioraram com o acesso a eles por parte da classe C.
Ora bolas! Fazendo um paralelo histórico, não foi justamente para se criar um mercado consumidor do período pós-Revolução Industrial que a humanidade acabou com a escravidão oficial? Como é que o capitalismo pode reclamar do aumento do consumo? O capitalismo não reclama, mas a classe média impregnada pela cultura capitalista sim. O que adianta ter acesso a um serviço exclusivo se todo mundo tem? Isso deixa de ser exclusivo e torna a classe média mais distante dos ricos.
O conceito de exclusivo como diferenciação de classes
Antes do surgimento da chamada classe C, a classe média tinha o direito exclusivo de tomar os seus centros de compras, os shoppings, para comprar o que não precisa, pagar muito por um produto que vale pouco, ostentar marcas acusadas pelo Ministério do Trabalho de empregar mão de obra escrava (Zara, C&A, Riachuelo, Nike), acumular dívidas no cartão de crédito ou cheque especial para ostentar um padrão de vida financeira incompatível com a sua renda.
Já os ricos fazem compras, entre outros pontos, na famosa Daslu, em São Paulo, cuja dona foi presa por sonegação fiscal, falsificação de documentos, formação de quadrilha, além de contratos com fornecedoras também acusadas de mão de obra escrava.
O ponto comum entre os ricos e a classe média no quesito compras é o conceito de exclusivo, o que legitima o poder de compra e diferencia uma classe social da outra. É mais fácil discriminar outros do que exigir que os prestadores de serviços entreguem o que venderam. Entretanto, você compra o serviço de uma empresa, não de uma classe social “inferior” a sua.
A identidade da periferia
Relegados a uma realidade paralela nas periferias, a classe trabalhadora pobre, principalmente a juventude, cria identidade visual, linguística com gírias e musical, ou seja, cultural própria. É claro que essa identidade é logo percebida pela classe média como coisa de gueto, ou seja, de pobre. Daí, advém a discriminação a tudo que identifique este elemento social – “pobre”. Enquanto isso, a classe média consome roupas, cortes de cabelo e música que considera superior a da “ralé”, como: o pagode, o sertanejo universitário (que em termos de letra e cultura tão pouco acrescenta alguma coisa) e, principalmente, música americana (o que os aproximam da elite, consumismo, ode ao imperialismo e “babação de ovo” a marcas e tudo que é dos EUA etc.).
O desejo de consumo da periferia
Todo mundo quer se sentir incluído, fazer parte da maioria. Essa inclusão é tratada pelo chamado “funk da ostentação”, música em toga na periferia, como o consumo e acesso dos milhares de jovens da periferia ao mundo da classe média, seja almejando o mesmo nível de consumo de produtos caros e de marcas para ricos ou frequentando os mesmos lugares.O chamado funk ostentação escancara esse desejo de ascensão social por meio do consumo.
Esse desejo da periferia aos redutos da classe média é visto como vandalismo, ou seja, uma classe inferior economicamente ousar frequentar os mesmos antros de consumo e ostentação de uma classe (na hierarquia capitalista) superior. Daí, a principal discriminação ouvida aos jovens da periferia ser: “aqui não é o lugar de vocês”, ou seja, os pobres saíram do gueto. Esse movimento é visto como um risco, como se fosse um “Occupy shoppings”, uma demarcação de territórios também da periferia que quer ser incluída, o que não é tolerado pela cultura capitalista da classe média reacionária. Não é negado o direito ao consumo, é negado o direito de adoração ao consumo na mesma proporção e nos mesmos locais da classe média.
A repressão ao “rolezinho”
Tudo bem quando peruas da classe média ou ricas passam horas e horas paquerando vitrines sem comprar nada ou experimentando 100 sapatos para, talvez, comprar um e perguntando o preço de mil bolsas sem levar nenhuma. Contudo, a barreira social invisível não permite este mesmo comportamento aos pobres. A eles não é dado o direito de almejar os mesmos produtos, serviços ou lugares da classe média.
Por isso, os grupos de jovens pobres paquerando, circulando, usando os banheiros climatizados da classe média nos shoppings são tratados como caso de polícia. Os jovens são vistos como delinquentes, possíveis saqueadores, baderneiros, ou seja, romperam a ordem social vigente. Lugar de pobre é nos guetos.
Contudo, vale lembrar que os detectores de metais colocados nas portas das inúmeras lojas de shoppings não estão lá por causa dos pobres. Estão lá por causa desta mesma classe média que comprava uma roupa e levava outra por baixo, desta mesma classe média que, discretamente, comprava um produto e poderia levar outro na bolsa, bolso etc.
Os pobres andam em grupo? Sim, é uma forma de identificação e reconhecimento social. Um pobre é invisível. Todos juntos não podem ser ignorados pela sociedade e uma casta superior incomodada com pobres nos shoppings. Os pobres gostam de música de mal gosto? As casas de show, bares e restaurantes processados por vizinhanças incomodadas com o barulho tocam as músicas da classe média, mas não despertam tanta ira coletiva histérica quando importunam.
Lamentavelmente, muitos vendedores desses shoppings, seguranças, policiais são tão pobres quanto à juventude da periferia, mas torcem o nariz para aquelas pessoas que lhes são tão próximas socialmente por almejarem estar mais próximas de seus clientes reacionários habituais dos shoppings. É a cultura capitalista de se colocar um ranking de ascensão e aproximação social com a classe mais abastada, negando aproximação ou a inclusão em classe inferior.
O racismo ora velado, ora descarado
Muitos desses jovens da periferia que ousaram dar um “rolezinho” trabalham para empresas que produzem os produtos expostos nos shoppings ou em outros trabalhos aceitáveis para pobres, como: porteiros, pedreiros, motoristas, lixeiros, seguranças de shoppings, frentistas, repositores de estoque, babás etc.
Daí, ser racista a declaração de uma lojista de um shopping para ricos em São Paulo. Ela disse: “não somos racistas. Não temos nada contra negros. Aqui até tem muitos deles, seguranças, faxineiras. Eles entram e saem daqui todos os dias”. Essa lógica racista permeia, inclusive, a ação policial contra esses jovens. Se você é negro, como a maior parte da periferia, numa representação histórica da diferença de classes no Brasil desde o fim oficial da escravidão, você não pode frequentar lugares de brancos, representados aqui pela classe média, sem um crachá de empregado e na condição de subalterno.
“Rolezinho de branco” da classe média não é reprimido
Essa juventude da periferia é desocupada, vagabunda e maloqueira? Quando filhos da classe média enchem a cara, drogam-se a vontade, tacam fogo em índio ou mendigos, estupram, dirigem embriagados e arrancam um braço de um trabalhador que ia para o trabalho em plena Avenida Paulista, engravidam suas namoradas e dão no pé, filmam suas parceiras em relações sexuais e divulgam na internet sem a permissão delas, eles não são tratados como vandâlos ou maloqueiros. São vistos como jovenzinhos rebeldes e, no máximo, inconsequentes.
Não é à toa que “rolezinho” de branco é visto como engraçadinho, legal, quase um flash mob (encontro agendado previamente para apresentação de dança ou música em local público) . “Pelo menos desde 2007, centenas de “bichos” da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA) reúnem-se no Shopping Eldorado, na zona oeste de São Paulo, para celebrar o ingresso na universidade: em grupos grandes e barulhentos, sempre entoando os gritos de torcida da atlética da faculdade, eles ocupam o hall de entrada e os corredores, marcham até a praça de alimentação e, lá, seguem pulando, cantando e usando as mesas como instrumentos de percussão. A manifestação, similar à aglomeração causada pelos “rolezinhos” marcado pelas redes sociais para sábado (11) no Shopping Itaquera, na zona leste, administrado pelo mesmo grupo empresarial, é permitida e conta até com patrocínio oficial de lojas. Fonte: Jornal Brasil de Fato.”
Dois pesos e duas medidas. Para a maioria branca da classe média, tudo; para a maioria negra das periferias, discriminação, preconceito racial, balas de borracha, gás de pimenta e xingamentos. O aparecimento inesperado dos “rolezinhos” escancara a existência de um apartheid social latente e a de um traço característico das classes abastadas brasileiras, que vivem sob o mito da democracia racial. Com a mera intenção de se divertir, paquerar, dar beijo na boca, olhar vitrine, consumir, a periferia acabou fazendo política e desmascarando a hipocrisia da sociedade capitalista brasileira.
O rolezinho dos políticos na periferia
Já, já, começa o “rolezinho” dos políticos na periferia. Eles vão lá sujar seus sapatos de “bacanas”, suas roupas de grife, ternos, paletos que, talvez, custem mais do que o orçamento do mês de uma família inteira. Promessas disso, promessas daquilo, mas uma certeza única: de pobre, os políticos tradicionais dos partidos reacionários só querem o voto. Pegar na mão só para fotos, beijar criancinhas só na frente da imprensa. Pobre só se torna visível em época de eleição. É um processo físico-político do capitalismo preconceituoso e racista brasileiro.
A inclusão da periferia em políticas públicas
Os reacionários se sentem mais ofendidos com a possibilidade remota de um furto num shopping do que a realidade cruel e violenta imposta à população trabalhadora da periferia, que é reprimida pela polícia e sente no dia a dia o peso da violência. Quando os shoppings mobilizaram a polícia para as suas portas, quem garantiu a segurança dos moradores da periferia? Quantos roubos ou furtos ocorreram nas casas das famílias e vizinhos desta juventude discriminada enquanto eles tentavam se divertir? Quem vai se responsabilizar pelo abandono público das periferias?
O “rolezinho” não é uma movimento organizado, não é institucional, não é uma reivindicação, muito menos revolucionário. Contudo, já pisou no calo das classes mais abastadas ao profanar seus locais de adoração do consumo. E esse choque de classes demonstra mais uma vez que a relação dos mais abastados com os trabalhadores pobres das periferias nunca será pacífico, cordial e inclusivo.
Agora o que tem que ficar claro é que precisamos incluir a periferia num projeto de desenvolvimento humano e social. E isso não para a juventude não incomodar os templos de consumo e ostentação. Para a periferia ser incluída no processo social e político brasileiro. E isso não ocorrerá apenas com mais conforto, o consumo de marcas caras, ostentação a vizinhança do poder de compra, exibicionismo capitalista do consumismo vazio. Isso terá que ocorrer com educação inclusiva, segurança pública, mudança de orientação da polícia quanto à criminalização da pobreza e das populações negras, levar cultura, teatros, cinemas, apresentações musicais, exposições, cursos de idiomas e outros, praças públicas, eventos abertos, pistas de skate, áreas de lazer à periferia. Uma política social inclusiva para a periferia.