O Brasil foi erguido em cima do sangue e trabalho das populações indígenas, dos negros e imigrantes. A imagem de um país cordial, sem conflitos raciais, preconceitos de etnias não condiz com a inserção e muito menos com a realidade imposta aos povos que formaram e formam o país.
A farsa da abolição da escravatura, por exemplo, completa 130 anos com grande parte da população negra sob as mesmas condições sociais precárias de seus antepassados. O Brasil foi o último país das Américas e um dos últimos do mundo a acabar com a escravidão “formal”. E isso só porque o modelo de tráfico de escravos estava enfraquecido e porque Dom Pedro II tinha planos de manter a monarquia angariando simpatia com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel a seu mando em 13 de maio de 1888. Não deu certo. A monarquia caiu um ano depois.
Fato é que o Brasil não terminou o processo de abolição, já que a nossa população negra não foi “alforriada”. Foi, na verdade, abandonada a própria sorte, sem capital, sem instrução, sem condições de subsistência. Essas condições históricas perpetuam até os dias atuais e são comprovadas pela frieza dos números.
As estatísticas mostram a discriminação contra os negros no mercado de trabalho e a criminalização da juventude negra das periferias. A mulher negra sofre ainda mais. No Brasil, por exemplo, a renda média da mulher é equivalente a cerca de 75% da renda do homem para cargos equivalentes. Mas, no caso da mulher negra, essa diferença aumenta e chega a 50% do salário dos homens.
Dois terços das cerca de 60 mil vítimas anuais da violência são de jovens negros. O IBGE afirma que a grande maioria do total de 16 milhões de brasileiros na extrema pobreza é negra ou parda. 9,9% da população negra é analfabeta. Entre os brancos, o número é de 4,2%.
Mesmo com a política de cotas nas universidades brasileiras, o percentual de negros no ensino superior é de cerca de 30%. E reparem como grande parte da população ainda não compreende a discussão sobre como as cotas nas universidades se inserem dentro do debate racial.
Em 2007, a população negra representava 25% do quadro funcional e 3,5% do quadro executivo das empresas no Brasil. Em 2010, negros eram 31,1% no quadro funcional e 5,3% no quadro executivo. Em 2016, os trabalhadores e trabalhadoras negros representavam 35,7% dos quadros funcionais e 4,7% do quadro executivo. Os números são do Instituto Ethos e mostram como ainda hoje a inserção da população negra nas universidades e no mercado de trabalho formal é desigual.
Em entrevista para a Carta Capital, o psicanalista italiano Contardo Calligaris, que vive no Brasil desde a década de 80, afirma que “cada brasileiro traz em si a figura do colonizador, do dominador e explorador brutal. Todas as relações de poder do Brasil são absolutamente habitadas pelo fantasma da escravidão. O poder se expressa como dominação física sobre o outro, uma assombração da escravatura que se recusa a desaparecer”.
A análise ajuda a entender por que muita gente guarda seus preconceitos e racismo no dia a dia, mas quando vão ao estádio, por exemplo, expõem insultando jogadores de futebol e/ou árbitros com injúrias raciais tudo o que não conseguem falar em situações corriqueiras por medo de serem identificados.
A escravidão ainda se impõe pela força em algumas regiões do país, além da dependência econômica. No fim do ano passado, o presidente Michel Temer tentou amenizar o conceito de escravidão moderna para atender principalmente o lobby do agronegócio. A indignação internacional e a luta do povo trabalhador impediram este ataque. Só de 1995 para cá, mais de 54 mil trabalhadores já foram resgatados nos pastos da região amazônica, nas minas de carvão do nordeste ou nas fábricas têxteis ilegais de São Paulo, que produzem para as grandes marcas do mercado. Trabalho escravo dá lucro.
Por suma, o combate ao racismo estrutural e a discriminação hoje caminham juntas na luta pela erradicação da pobreza, da representatividade, da inserção social e da luta por direitos iguais para todos e contra a exploração de classes da elite dominante.